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Mensagem por marcelo l. Sex maio 24, 2013 9:30 am

Mal entendido (Orígenes Lessa)

Os dois garotos brincam na praia.Um, branquinho, queimado de sol., os olhos claros, quase negro de tanto tomar sol toda manhã. O outro, negrinho, de família no morro. Os dois descem à praia diariamente. O primeiro, do nono andar de um apartamento de frente, tapetes no chão, lustres de cristal. O outro, de um morro qualquer, barraco de madeira. Os “amigos” se encontram a hora certa, camaradagem de pé na areia igualitária. O primeiro traz uma bela bola. O segundo não tem bola, mas traz jogo. O primeiro é bem nutrido, atestado vivo de que vitamina batida no liquidificador é mesmo bom. O segundo é fino e sujo, os dentes inexplicavelmente claros e fortes... Paulinho chama-se o primeiro, porque o avô foi Paulo e com ele começou a fortuna da família. O outro chama-se Jorge.

Descem os dois todo dia. Quando Paulinho vem acompanhado pelos pais, Jorginho assiste, apenas com o olhar, ao jogo em que a censura familiar não deixa preto se meter. Quando Paulinho vem só com a empregada – e é quase sempre – nem é preciso pedir licença. Jorginho tem lugar seguro, que ele é o artilheiro-mor da vizinhança. E a pelada se prolonga. Por ele, a manhã toda, a tarde toda, a vida toda. Não tem escola, não tem compromisso. Amendoim torrado ele vende à noite. Ao fim de meia hora, a pelada vai-se desfazendo. Parentes e empregados vêm recolher os futuros Garrinchas, os Pelés e Zagalos em formação. Paulinho fica mais tempo. E, quando está só, ele e Jorginho descansam na areia. Inseparáveis na pelada – Paulinho arma o jogo, Jorginho apanha a bola e arremata de maneira inapelável – uma funda rivalidade os separa em tudo mais. Nunca se entendem. Porque Paulinho é importante, e Jorginho é um coitado. Paulinho vai à escola à tarde, de carro. Jorginho vende amendoim à noite. Oito anos, Paulinho. Nove anos, Jorginho. Reconhecendo a superioridade incrível do negro, no bate-bola, reclamando a sua colaboração, garantidora de tentos, Paulinho se vinga depois. E com sua falta de diplomacia, tão própria da idade, faz valer os seus títulos, para humilhar o companheiro.
─ Tua casa tem tapete no chão? A minha tem até no quarto da empregada. Tem lustre de cristal? Jorginho pergunta o que é. Paulinho explica. Jorginho não tem. Nem luz tem.
─ Teu pai tem sítio em Petrópolis?
─ Não – responde sério Jorginho.
─ O meu tem... Teu pai tem usina em Campos? O meu tem. E o teu pai tem iate?
─ Não.
─ O meu tem. E quantos apartamentos o teu pai tem? O meu tem dez. Só em Copacabana. O resto é na Tijuca.
─ Tem nenhum – responde Jorginho que baixa os olhos, acaricia o monte de areia que está juntando. ... Paulinho apanha a bola molhada, procura limpá-la dos grãozinhos de areia, pergunta de novo: ─ Teu pai é deputado?
Jorginho nem sabe o que seja aquilo, mas já diz que não, pelas dúvidas. Deve ser coisa importante. ─ Teu pai tem automóvel? Jorginho sorri tristemente, negando.
─ O meu tem – diz novamente em triunfo de garoto bem-nascido. O meu tem , um que ele vai para a cidade, um da mamãe, uma caminhonete pra ir para o sítio e um pra ir pra Petrópolis. Jorginho está completamente esmagado. Paulinho sorri, orgulhoso. E agora nem pergunta mais, só informa: ─ O meu tem 40 ternos de roupa, o teu não tem. O meu tem três casas de campo, o teu não tem. O pai tem dez cavalos de corrida, aposto que o teu não tem. Meu pai é amigo do Governador, o teu não é, pronto! Jorginho sente-se o menor dos moleques do mundo, o menor de todos os mortais.
Mas Paulinho ainda não está satisfeito.
─ O meu pai tem foto no jornal, o teu pai não tem. É quando Jorginho pula vitorioso. Dessa vez tem resposta. Retira do bolsinho do calção rasgado um pedaço amarfanhado de jornal. Exibe-o, peito cheio, orgulho no olhar.
─ Isso não. O meu também tem.
E em tom de desafio, irretorquível:
─ Você pensa que só teu pai que é ladrão?

retirado
http://saladeleituraencantada.blogspot.com.br/2013/01/mal-entendido-origines-lessa.html
site muito bom por sinal.
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Mensagem por marcelo l. Sex maio 24, 2013 9:31 am

O Instituto Nacional do Amendoim

Na realidade o presidente da quase desconhecida república de El Palomar era um cavalheiro baixo, fortezinho de corpo, de voz explicada e monótona. Mas para evitar que vejam nesta narrativa qualquer alusão a figuras familiares entre nós, concordo em descrevê-lo alto, magro, engolidor de palavras, nervoso e atabalhoado no falar. Por extraordinária coincidência, quando visitei El Palomar o ditador Marechalíssimo Moreno governava o país há 15 anos. Mas ainda para evitar conclusões apressadas, convencionarei em encurtar o prazo para 14 anos e meio, de modo a varrer de vez toda e qualquer dúvida do leitor eventual. Ele subira ao poder por uma revolução vitoriosa contra o que chamava caudilhismo, tirania policial, política de braço forte, cerceamento das liberdades humanas. Como pretendo dar a este relato de viajante o caráter de uma quase narrativa imaginária, aceito a idéia de apresentá-lo não como imposto por uma revolução, mas como elevado ao poder por eleições livres e honestas. Não mencionarei os golpes sucessivos do marechal para prolongar-se no governo divertindo-se e tripudiando sobre a vontade popular.
Convencionemos que a sua perpetuação no poder tenha resultado de repetidas eleições, cada quatro anos, todas traduzindo a livre manifestação da opinião nacional. Mas cessem aqui as convenções, porque do contrário, de concessão em concessão, de explicação em explicação, nunca chegaria a contar o extraordinário caso do amendoim, que tanto apaixonou a agitada república tão injustamente desconhecida pelas grandes nações contemporâneas.
Como não pretendo mais reagir contra as coincidências, recordarei que, ao chegar a Río de Oro, capital do país, fiquei impressionado com a padronização dos jornais nos temas, na adjetivação, nas atitudes. Ler um era ler todos. Explicou-me logo um major do Exército, romancista nas horas vagas e então chefe da Direción General de Informaciones, que, para proteger o país contra os extremismos da direita e da esquerda, todos alienígenas, o governo criara um departamento paternal de controle e de auxílio à imprensa, fornecendo gratuitamente larga matéria editorial, levando mesmo o seu desejo de amparar as manifestações culturais ao ponto de financiar a imprensa com gordas subvenções.
- Tem sido tão bem compreendido o nosso esforço - garantiu-me o major -, que os diretores dos jornais, em agradecimento, constrangem-me, e aos meus auxiliares mais graduados, a aceitar parte dessa subvenção, que tanto tem contribuído para eliminar a produção intelectual. Se é verdade que um ou outro elemento subversivo mostra em surdina um vago descontentamento, temos a satisfação de saber que todos os elementos de responsabilidade, os diretores, os proprietários dos jornais sabem dar valor à boa vontade do governo e prestigiam todas as suas iniciativas.
- Há censura no país?
- Censura? Por Deus! Nunca! A própria imprensa, cônscia de suas responsabilidades perante a nação, faz a sua censura, evitando tudo o que possa prejudicar a boa marcha do país. Há neste ponto jornais tão escrupulosos que, para não incorrer no perigo de deslizes impatrióticos, publicam exclusivamente o amplo material por nós fornecido, que aliás dá trabalho à flor da nossa intelectualidade...
- ...que deve ser muito bem paga...
- Muito bem, propriamente, não. Nesse ponto nós estamos com aquele fidalgo espanhol. Lembra-se do que ele dizia com referência a Cervantes? O artista precisa sofrer, lutar, conhecer a miséria e a fome, para produzir melhor. A fartura amolenta, rouba a inspiração. Eu já notei por experiência própria que os escritores que melhor compreendem a nossa filosofia política e os que sabem melhor exprimir a sua admiração pelo Marechal são justamente os mais necessitados... quer ver?
E o major-romancista conduziu-me à sala de redação de seu departamento:
-Está vendo? Viu aquele magrinho? Estava na miséria. Tem a mulher tuberculosa. Perdeu dois filhos pouco antes de lhe darmos a mão. É o nosso melhor redator. Eu nem preciso ver o que ele escreve. Tenho confiança. E trabalha como um leão. Já os outros, melhor alimentados, são preguiçosos, displicentes, não se dedicam ao trabalho, deixam passar às vezes, no que escrevem, coisas que até poderiam comprometer a estabilidade do regime, se eu não estivesse aqui para zelar pelo futuro da pátria que, gracias a Dios, nos pertence.
E, para ilustrar o seu pensamento, levou-me ao seu gabinete, abriu uma gaveta:
- Veja o meu amigo o que é a displicência, a falta de atenção pelo serviço, da parte de certos intelectuais que, por menos necessitados, não se concentram na res publica, no interesse nacional. Há cerca de cinco anos o governo, para dar impulso a uma indústria que entre nós era das mais humildes, quase que exercida apenas por mendigos e desocupados, a do amendoim, criou o Instituto Nacional do Amendoim. Foi uma das iniciativas mais patrióticas e mais fecundas do Marechal (e eu notei então que, cada vez que mencionava o nome ou o título do magro, alto e atabalhoado ditador, o major empalidecia, baixava a cabeça com gestos hesitantes de quem não sabia se fazia continência ou tirava o chapéu). Pois bem - continuou o major -, confiei a um dos nossos redatores mais hábeis, romancista brilhante, uma grande reportagem sobre a fundação do Instituto. Era uma distinção que lhe concedia. Geralmente ele era encarregado apenas da preparação de telegramas, dando a lista dos viajantes recém-chegados, dos aniversários e casamentos na capital e das últimas nomeações do governo. Eu queria dar-lhe uma “chance”, um trabalho mais condigno com o seu estilo. Pensa que ele compreendeu o meu gesto, que deu valor à incumbência? Nem sequer tomou a sério... Quis fazer pilhéria... Veja só o título: “O governo, querendo dar emprego a afilhados e protegidos, lança mais um escárnio à face da nação: cria o INA”.
E indignado:
- Ora! Isso não se faz. Nós não estamos aqui para brincadeiras, não há tempo a perder... Ele não tem senso de responsabilidade, não pensa em fazer carreira, justamente porque tem alguns recursos... Por isso não leva nada a sério.
- E que foi feito com a reportagem?
- Evidentemente não podia ser publicada. Pilhéria de mau gosto... Guardei-a comigo por curiosidade, mostrei-a apenas ao meu amigo chefe de polícia e ao meu velho camarada que é o ministro da Guerra, para eles verem como é difícil lidar com quem não tem espírito público... Uma coisa incrível, doutor. Se não fosse aquele magrinho e uns outros magrinhos que estão na outra sala, eu não sei como poderia fornecer diariamente material para todos os jornais do país...
- Mas quer dizer que o senhor só conta com os magrinhos?
- Não. Isso é maneira de dizer... Tenho gordos também. E esses são muito eficientes, apenas não escrevem tão bem. São dedicados... O que é difícil é contar com os que não são nem muito gordos nem muito magros. Curioso, não acha?
Achei. Mas já estava muito mais interessado no INA, cujas glórias lera em todos os jornais da manhã, e pedi detalhes ao major.
- Ouça, meu amigo, o melhor seria fazer uma visita ao Instituto. O diretor é um velho amigo meu, brilhante oficial do Exército e primo-irmão do Marechal (e de novo ele ficou sem saber se devia fazer continência ou tirar da cabeça um chapéu que não trazia). O senhor vai gostar de conhecê-lo. É um grande organizador, um belo espírito, um dos parentes mais parecidos fisicamente com o Marechal. (E empalideceu novamente de emoção.) Vamos visitá-lo. O edifício do Instituto é uma verdadeira maravilha arquitetônica. Venha comigo...
Fui. De fato. Eram de assombrar os edifícios públicos de Río de Oro.
Verdadeiros palácios. Ao lado de casebres, cobrindo com sua sombra as ruelas humildes, de gente descalça, erguiam-se os mastodontes arquiteturais de mármore rebrilhando ao sol, de amplos salões, de móveis e tapetes asiáticos.
- Quase tudo indústria nacional - explicava com orgulho o major. - Quando não é indústria, é importação nacional...
- Perdão?
- Sim, importado por firmas genuinamente nacionais. Aqui não toleramos a penetração do imperialismo norte-americano, por exemplo. Não consentimos. Para evitar isso, num gesto do sadio nacionalismo, como frisei num discurso recente, um dos irmãos do Marechal fundou uma empresa de representações. Assim impedimos que os estrangeiros venham se locupletar, como intermediários, nos fornecimentos ao governo...
- E o Instituto...
- É um exemplo... Foi construído pelo senador Contreras, excelente pessoa, muito culto, primo do Marechal. Nada de estrangeiros. O senador se encarregou de tudo. Desde as maçanetas das portas ao mármore de Carrara, tudo foi a firma dele que forneceu. E o edifício ali está...
Estava. Era imponente. Dez andares, todo um quarteirão.
- Mas todo um prédio desses só para o amendoim?
- O amigo compreenderá logo. Verá. É um prodígio de organização, a mais completa e modelar que temos.
E eu logo pude ver. Minutos depois estávamos diante do coronel-diretor, que nos fazia percorrer todas as dependências da casa e expunha, com grande entusiasmo, os milagres já feitos. Apesar de recente, e apesar de manobrar com a mais humilde, e menos rendosa, a mais rudimentar e a mais abandonada das indústrias agrícolas do país, o Instituto conseguira, em menos de cinco anos, coisas extraordinárias.
- Nós tivemos Institutos congêneres que fracassaram relativamente - disse-me ele. O da Yerba Mate, por exemplo. Fracassou porque ainda não tínhamos experiência, tanto assim que vai ser totalmente reformado, sendo dirigido pela própria enteada do Marechal. A exportação caiu. Os estrangeiros sabotavam as nossas medidas de estímulo à lavoura ervateira. E isso prejudicou muito o país, porque a yerba era a nossa maior fonte de riqueza. Mas com o Instituto do Amendoim evitamos os erros anteriores, aproveitando a experiência passada. E devo dizer que, nesse particular, fui favorecido pela sorte. Não tive que enfrentar a má vontade estrangeira, principalmente americana, porque o amendoim era produto que pesava pouco na balança de exportação. Pude contar apenas com o elemento nacional que sabe dar valor aos benefícios que lhe trazemos.
- E que benefícios são esses?
- Em primeiro lugar, a valorização do produto.
- Como assim?
- Muito simples. Depois de fundado o Instituto, o amendoim, que era um produto desprezível, vendido por preços ínfimos, valorizou-se extraordinariamente. Era um produto abandonado, vendido nas esquinas pelos índios, alimento de pobres, a preços ridículos. Hoje, está valendo 50, cem vezes mais.
- Valendo ou custando?
- Se está custando, está valendo, não acha?
- Sim...
- Começamos por controlar a produção. Antes, qualquer vagabundo podia plantar amendoim. Em todos os quintais o primeiro pé-rapado podia ter a sua plantaçãozinha, o que prejudicava os verdadeiros produtores. Agora, não. É preciso uma licença especial. Só agricultores qualificados podem plantar amendoim. E nós não procedemos levianamente. Para obter a licença (a regulamentação do amendoim já deu origem a mais de 200 decretos-leis) o interessado tem que apresentar uma documentação completa: provar que é dono das terras exibindo papéis relativos aos últimos 80 anos (o que é uma fonte de renda para o Estado, anima os negócios, faz circular o dinheiro, auxilia os advogados, os cartórios, os tabeliões), e só pode empregar nessa lavoura pessoas diplomadas pela Escola Técnica de Amendoim e Culturas Afins...
- Diplomadas? Um curso especializado?
- Bem... Nesse ponto não somos muito exigentes. Não obrigamos o candidato a perder tempo na Escola, mesmo porque ainda não está funcionando. Enquanto não se organiza a Escola, que vai ser um monumento de arquitetura moderna, facultamos aos interessados, mediante módico pagamento, o uso de uma licença especial, de caráter temporário, renovável cada três meses, a fim de poderem trabalhar nos campos de cultura amendoinzeira. Para evitar que o amendoim seja cultivado por pessoas inidôneas, todos os plantadores são obrigados a um depósito correspondente à metade do valor das terras, no Banco del Palomar. A vantagem é dupla: só agricultores qualificados se dedicam a essa indústria tão futurosa amparada pelo Estado, com garantias de preços mínimos, e ganha a economia nacional, porque crescem os depósitos bancários...
- Mas a obrigação de apresentar documentos dispendiosos e de fazer os depósitos não assusta e não afasta os agricultores possivelmente interessados?
- Afastaria, talvez, se o governo não tivesse visão. Mas o decreto 8.063 previu e preveniu o perigo. O senhor sabe: somos um país pequeno, que só agora disputa o seu lugar no concerto dos povos. Precisamos controlar a vida nacional, constranger os proprietários ao aproveitamento de suas terras em benefício da coletividade...
- E...
- E assim é que o Estado é que determina quais os agricultores qualificados, quais as terras que devem ser dedicadas à cultura do amendoim...
- E se eles se recusarem?
- Não se recusam. Em primeiro lugar, porque o patriotismo é o apanágio do nosso povo. Em segundo lugar, porque o governo, com sua sabedoria, sabe constranger os que porventura queiram fugir ao cumprimento do dever.
- Com sanções?
- Não. Com multas.
- Pesadas?
- Na aparência.
- Por que na aparência?
- Na verdade, a multa corresponde ao dobro do depósito que o agricultor deveria fazer se pretendesse plantar amendoim. Mas se ele acabar caindo em si e reconhecer o seu erro...
- Será devolvido o dinheiro da multa...
- Em parte. O governo devolve 25% da quantia já paga, ficando o infrator apenas na obrigação de fazer o depósito da lei com um pequeno acréscimo de 10%, destinado a fomentar pesquisas em torno da vitaminologia do amendoim...
- Mas isso é escorchante, não será?
- Parece. Não chega a ser. Poucos são os agricultores relutantes. E o governo não faz isso apenas com a intenção de arrecadar dinheiro para si. A intenção é mais patriótica: obrigar o dinheiro a circular, distribuir melhor a riqueza...
- Distribuir a riqueza?
- Sim. O Instituto tem 1.035 fiscais. Todos eles beneficiados com 35% das multas. Alguns já estão bastante ricos, o dinheiro não se concentra mais na mão dos latifundiários.
- E é fácil conseguir o posto de fiscal?
- É o que o senhor pensa! O fiscal tem que ter habilitações muito grandes. Precisa ter um diploma, ou certificado de habilitação temporária, também renovável cada três meses, e deixar no Banco Nacional um depósito de 25 mil pesos. Além disso, não é qualquer desclassificado que pode alcançar o posto. Precisa pertencer às famílias tradicionais, a gente bien. E é uma classe socialmente respeitada: 67% pertence à família ou às relações pessoais do Marechalíssimo. Mais ainda, para prestigiar o amendoim, as nomeações são feitas diretamente pela Presidência da República.
- Quer dizer que a produção deve ter aumentado enormemente...
- Em termos, sim. Mas as leis não podem ser inflexíveis, naturalmente. O que vale não é a letra, é o espírito da lei. Há casos em que o interesse da economia geral pode aconselhar o aproveitamento de terras amendoinzáveis para outras culturas mais urgentes e...
- E nesse caso há dispensa...
- Sim, sempre que o proprietário abra mão do depósito legal e pague uma taxa de isenção...
- Que afinal vem onerar demasiadamente as outras culturas...
- Iria onerar. Iria, se a legislação não soubesse prever. Mas o INA auxilia, nesse caso, a agricultura, facultando ao lavrador o pagamento em espécie, isto é, quem pretende cultivar, digamos, batatas, pode pagar a sua taxa em batatas, arroz em arroz, bananas...
- Em bananas...
- Isso. O senhor apanhou bem o espírito da lei. O INA faz tudo para cooperar...
- Mas isso obriga o INA a ter depósitos imensos e armazéns...
- Não é necessário. Prevemos isso. O próprio agricultor se incumbe de vender a mercadoria, cujo preço é taxado por nós, recolhendo o dinheiro aos cofres públicos...
- Assim que tenha efetuado a venda...
- Não. Isso não deu certo. Causa delongas, dá lugar à má-fé dos menos patriotas. O pagamento é feito antecipadamente. Mas o produtor não fica prejudicado por isso porque, de acordo com o regulamento, ele poderá pagar-se com as primeiras vendas que realizar...
Eu estava positivamente encantado com a república de El Palomar e com as medidas de proteção à indústria do amendoim, que, em latim, era mendobus, segundo me garantiu o diretor do INA.
Essas informações eram prestadas à medida que percorríamos salas faustosas, com ar condicionado, gráficos fabulosamente desenhados, mostrando a extraordinária valorização do produto nos últimos anos, além de quadros históricos com figuras da literatura, da arte, da militança comendo amendoim, entre as quais Balzac, Napoleão e Casanova. O major-romancista não se cansava de aprovar e mostrar outros aspectos da obra já realizada. Um deles:
- Reparou no vasto funcionalismo do Instituto? É um dos benefícios que trouxe: combate o desemprego, dá serviço a mais de 2 mil pessoas, só na capital, sem falar nos postos e entrepostos regionais de fiscalização, controle e fomento. Uma coisa extraordinária. Quase toda esta gente não fazia nada antes... principalmente as moças. Algumas, mesmo, estavam quase beirando o abismo social do... do... de certos maus passos. Mas o INA surgiu e deu-lhes amparo e trabalho, digno e remunerador.
Visitamos a seguir o Museu Histórico, Etnográfico e Industrial do Amendoim, no sétimo andar, a Biblioteca Especializada, no oitavo, a sala de projeções cinematográficas, o Laboratório de Pesquisas e outros departamentos.
- Antigamente - disse-me o diretor - o comércio do amendoim era o mais pobre do país, como talvez ainda seja no seu...
Parou, para que eu confirmasse, compungido.
- ...Hoje, não. O INA também cuidou desse aspecto. Acabamos com os vendedores avulsos, maltrapilhos. Só casas especializadas podem vender amendoim. Não viu o Palácio do Amendoim, na Plaza de Armas? É perfeito, limpo, claro, batido de luz, com recolhedores próprios para as cascas. Aliás, o INA mantém uma missão na América do Norte há quatro anos estudando as possibilidades do aproveitamento industrial da casca de amendoim. Vai ser mandada outra missão para a Europa com o mesmo fim. Foi organizada há dois anos e só não seguiu ainda em virtude da guerra. Tão pronto termine, a missão seguirá. Por sinal que todos os seus membros estão impacientes por partir porque, o senhor compreende, é desagradável receber sem trabalhar...
E acrescentou:
- O INA pensa em tudo. E contribui até para o desenvolvimento intelectual do país. Todos os anos há um prêmio para o melhor romance e para a melhor peça de teatro em que se focalizem as virtudes do amendoim. O prêmio de romance deste ano coube a Conejo Nieto com o seu livro El Amante Insaciable, uma obra-prima.
Entrávamos numa sala que me encheu de surpresa; oficina de costura.
O major viu o meu espanto e explicou:
- Sim, é uma oficina-modelo, que desenha os uniformes para os vendedores de amendoim. Mudam todos os anos. Não permitimos que se venda amendoim em trajes comuns. É mais distinto. A diretora da seção, senhora de muito boa família, amicíssima do Marechal, deve seguir para Nova York dentro de um mês, em viagem de estudos...
Voltávamos para o corredor e eu olhava um gráfico. E, embora o valor do amendoim tivesse sido multiplicado por 50 e por cem, no último lustro, outros dados mostravam que a produção subira menos de meio por cento.
Estranhei a coisa em voz alta.
- Isso faz parte dos nossos planos - disse o diretor. - Um dos nossos cuidados foi valorizar o amendoim não somente como preço, mas como categoria...
- Não compreendo...
- É simples. Valorizando no preço, custeamos o INA sem onerar o Tesouro. E mais do que isso: com o aumento do preço damos classe ao produto. Um pacote de amendoim, que era antigamente um punhado de peanuts, como dizem os americanos, embrulhado num pedaço imundo de jornal, custava então dez centavos. Hoje, a mesma porção bem apresentada, obrigatoriamente em papel-celofane ou em caixas de grande luxo, para presentes, custa dez, 20, 30 pesos. Nesse ponto damos inteira liberdade ao comércio. Resultado: deixou de ser produto para a ralé. É um artigo procurado pela nobreza e pelo clero, pelas classes mais representativas. Nosso plano é dar ao amendoim a classe que tem o caviar fora da Rússia, o champanhe na França e fora da França, as jóias, os perfumes pelo mundo inteiro. E isso será conseguido brevemente, assim que tivermos concluído a repressão do contrabando vindo das repúblicas vizinhas.
E em tom confidencial:
- Infelizmente temos tido certas dificuldades, porque há pessoas altamente colocadas interessadas no contrabando. O próprio...
Mas uma tosse viva e seca do major cortou-lhe a palavra. O diretor empalideceu. E para dizer qualquer coisa:
- E no seu país... o governo tem feito alguma coisa pelo amendoim?
Afirmei humildemente que não.
- Oh! Mas é incrível! É incrível! Um país tão adiantado, tão progressista como o seu, não fez, não faz nada pelo amendoim?
- Mas faremos, faremos sem dúvida nenhuma! - afirmei, cheio de confiança na minha terra e nos seus estadistas.
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