Bolivia e a justiça comunitária
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Bolivia e a justiça comunitária
Quando chegou ao hospital Boliviano-Holandês de El Alto, o homem era uma espécie de vulto putrefato que se desmanchava por dentro. E seu quadro clínico era complexo: queimaduras de terceiro grau nos braços, no abdome e nas pernas. Seu rosto se salvou das chamas por milagre. Seu pescoço também. Jazia no leito, vestido touca cirúrgica e bata. Tinha o corpo besuntado por um creme antisséptico, e seu único contato com a realidade era uma janela envidraçada que o separava de quem o visitava.
O homem, um estelionatário de pouca monta, havia se passado por cobrador de impostos no bairro de Puerto Camacho, a meia hora do centro da cidade de El Alto. Lá, alguns moradores, depois de descobrirem a farsa, cobriram a cabeça do homem com seu próprio pulôver e o massacraram: socos, insultos, chutes, tapas. Os maus tratos se prolongaram até o anoitecer. O homem perdeu os sentidos várias vezes. E, como ato final –antes que sua mulher o resgatasse –, o encharcaram de combustível e atearam fogo.
Quando voltou a si, o homem parecia um pedaço de papelão recém-amassado. E preferiu manter o anonimato. Por um interfone, declarou que a multidão caiu em cima dele repentinamente, e ele nada pôde fazer para escapar do quase linchamento. Naquela ocasião, o homem dormia a maior parte do tempo; agitava-se facilmente assim que os calmantes do conta-gotas perdiam efeito; parecia ter medo até do seu reflexo.
Histórias como a sua se repetem como um eco na imprensa local, quase todos os meses. Em 28 de junho de 2006, no bairro Mercedes B, em El Alto, Julio Mamani, de 55 anos, foi pendurado em uma estrutura de madeira após ser flagrado roubando algumas ferramentas. A polícia enfrentou os agressores, mas Mamani já não respirava quando os agentes conseguiram se aproximar. Em 12 de março de 2007, também em El Alto, uma ladra foi torturada durante 14 horas por um grupo que a despiu completamente antes de libertá-la. Em Santa Cruz de la Sierra, maior cidade maior do leste boliviano, um sujeito foi espancado até a morte, semanas atrás, depois de ser surpreendido abusando sexualmente de uma mulher em um bairro afastado. E no ano passado, em um pequeno povoado de Potosí, no sudoeste do país, teve lugar um dos acontecimentos mais macabros das últimas décadas. Lá, uma multidão de camponeses enterrou vivo um adolescente de 17 anos acusado de estuprar e assassinar Leandra Árias, de 35. Primeiro, obrigaram-no a participar do velório da suposta vítima. Depois, atiraram-no sobre o caixão com as mãos amarradas, jogando terra sobre ele até asfixiá-lo. O padrão é quase sempre o mesmo – um estranho que comete um crime, homens e mulheres que agem como manada, surras, gritos, intimidações. E o resultado, uma tragédia.
Segundo um estudo do sociólogo Juan Yhonny Mollericona, entre o ano de 2001 e o primeiro semestre de 2008, só na cidade de El Alto aconteceram 88 tentativas de linchamento e 15 mortes por agressões coletivas. Entre 2008 e 2013, o jornal Los Tiempos relatou 21 episódios similares no departamento (Estado) de Cochabamba. A Defensoria do Povo afirma que, entre 2005 e 2012, houve pelo menos 180 mortes por causa de execuções extrajudiciais sumárias; esta mesma instituição registrou outros dez crimes desse tipo na primeira metade de 2013. E o Grupo de Apoio Mútuo, uma organização humanitária, situa a Bolívia em segundo lugar – depois da Guatemala – entre os países com o maior número de casos comprovados de arbitrariedades. A maioria das estatísticas provém de uma minuciosa revisão do noticiário. Nos escritórios da Força Especial de Luta Contra o Crime, estes delitos costumam ser registrados como homicídio ou como tentativa de homicídio, e não há atualmente nenhuma cifra oficial a respeito.
Enquanto isso, os bairros localizados na periferia das cidades mais povoadas do país estão infestados de bonecos de pano que pendem como espantalhos dos postes de luz, junto a pichações que costumam ser um aviso para a violência vindoura. “Ladrão será linchado”, dizem algumas. “Ladrão flagrado será amputado”, ameaçam outras. “Automóvel suspeito será queimado”, lê-se nas paredes de tijolo aqui e ali. E um dos lugares onde esses macabros bonecos mais se reproduzem – quase como parte do mobiliário urbano –é El Alto.
Em um de seus bairros, chamado 30 de Setembro, o morador Esteban Ticona, um sujeito atarracado, ainda por cima agente de polícia, diz que há alguns anos uma ladra foi linchada. Era uma mulher que buscava recursos para alimentar seus sete filhos e que foi flagrada no meio da rua com uma televisão que não era sua. Ela foi moída a pauladas por uma turba inflamada, composta por homens e mulheres de olhos esbugalhados. Essa uma mulher morreu amarrada com suas próprias tranças ao alambrado de campinho de futebol, sem que ninguém movesse um dedo para soltá-la.
“Fui avisado por telefone e, quando cheguei ao campo, a senhora já estava nas últimas. Não havia nem como me envolver, era tarde demais”, recorda Ticona.
Para Norma Barrancos, funcionária da rádio San Gabriel, o problema é que pouco a pouco se perdeu a confiança nos órgãos estatais. “A polícia carece de infraestrutura, de pessoas, de equipamentos, de tecnologia. E isso obriga as entidades comunitárias a atuarem de outras maneiras para se protegerem”, explica. “Por isso os linchamentos aumentaram. Em El Alto, por exemplo, há muita insegurança, muitos assassinatos. Quando acontece alguma coisa, as autoridades, com frequência, nem sequer atendem às emergências. E nem sempre se consegue reabilitar os delinquentes que vão parar na cadeia. Qual é então a solução?”, se pergunta. “A justiça pelas próprias mãos”, ela mesma responde. "Alguns pelo menos, pensam isso: que é preciso liquidar os malfeitores.”
Segundo sua lógica,o ataque é o melhor mecanismo de defesa. Como se o único método para evitar que um criminoso se aproxime – e entre em ação - seja alimentar seu medo.
No bairro Franz Tamayo, de El Alto, quando são testemunhas de algum movimento estranho os vizinhos dão o alarme com a ajuda de rojões, apitos e mensagens de texto. E em Villa Egüez, outro bairro da periferia, se organizaram para fazer rondas noturnas de vez em quando. Ali, Ismael, um tipo vaidoso que usa óculos e um chapéu de aba larga, comenta que quem vem com más intenções ou faz algo mau tem de ser castigado. “Mas nunca até a morte. A vida tem de ser respeitada.”
As sentenças às quais os autores são condenados são uma raridade digna de museu. Poucas foram postas em prática nos últimos dez anos. E o habitual é que as investigações se eternizem ou não acabem em nada. Sobretudo porque as instâncias encarregadas da administração da Justiça estão saturadas. Em 2012, das 405 denúncias registradas na divisão de Homicídios de El Alto – várias delas por linchamento – somente foram esclarecidas 26. E os dois promotores encarregados dos crimes de sangue nessa cidade, a maior do Altiplano boliviano, manuseiam cerca de 1.500 causas que escondem mistérios que ainda não puderam ser resolvidos.
Esteban Ticona, um policial que reside no bairro 30 de Setembro, tem uma frase que tenta dar sentido a essa situação que tira do sério os parentes dos que são alvo de linchamento: “Quando o tempo passa, a verdade foge.”
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O homem, um estelionatário de pouca monta, havia se passado por cobrador de impostos no bairro de Puerto Camacho, a meia hora do centro da cidade de El Alto. Lá, alguns moradores, depois de descobrirem a farsa, cobriram a cabeça do homem com seu próprio pulôver e o massacraram: socos, insultos, chutes, tapas. Os maus tratos se prolongaram até o anoitecer. O homem perdeu os sentidos várias vezes. E, como ato final –antes que sua mulher o resgatasse –, o encharcaram de combustível e atearam fogo.
Quando voltou a si, o homem parecia um pedaço de papelão recém-amassado. E preferiu manter o anonimato. Por um interfone, declarou que a multidão caiu em cima dele repentinamente, e ele nada pôde fazer para escapar do quase linchamento. Naquela ocasião, o homem dormia a maior parte do tempo; agitava-se facilmente assim que os calmantes do conta-gotas perdiam efeito; parecia ter medo até do seu reflexo.
Histórias como a sua se repetem como um eco na imprensa local, quase todos os meses. Em 28 de junho de 2006, no bairro Mercedes B, em El Alto, Julio Mamani, de 55 anos, foi pendurado em uma estrutura de madeira após ser flagrado roubando algumas ferramentas. A polícia enfrentou os agressores, mas Mamani já não respirava quando os agentes conseguiram se aproximar. Em 12 de março de 2007, também em El Alto, uma ladra foi torturada durante 14 horas por um grupo que a despiu completamente antes de libertá-la. Em Santa Cruz de la Sierra, maior cidade maior do leste boliviano, um sujeito foi espancado até a morte, semanas atrás, depois de ser surpreendido abusando sexualmente de uma mulher em um bairro afastado. E no ano passado, em um pequeno povoado de Potosí, no sudoeste do país, teve lugar um dos acontecimentos mais macabros das últimas décadas. Lá, uma multidão de camponeses enterrou vivo um adolescente de 17 anos acusado de estuprar e assassinar Leandra Árias, de 35. Primeiro, obrigaram-no a participar do velório da suposta vítima. Depois, atiraram-no sobre o caixão com as mãos amarradas, jogando terra sobre ele até asfixiá-lo. O padrão é quase sempre o mesmo – um estranho que comete um crime, homens e mulheres que agem como manada, surras, gritos, intimidações. E o resultado, uma tragédia.
Segundo um estudo do sociólogo Juan Yhonny Mollericona, entre o ano de 2001 e o primeiro semestre de 2008, só na cidade de El Alto aconteceram 88 tentativas de linchamento e 15 mortes por agressões coletivas. Entre 2008 e 2013, o jornal Los Tiempos relatou 21 episódios similares no departamento (Estado) de Cochabamba. A Defensoria do Povo afirma que, entre 2005 e 2012, houve pelo menos 180 mortes por causa de execuções extrajudiciais sumárias; esta mesma instituição registrou outros dez crimes desse tipo na primeira metade de 2013. E o Grupo de Apoio Mútuo, uma organização humanitária, situa a Bolívia em segundo lugar – depois da Guatemala – entre os países com o maior número de casos comprovados de arbitrariedades. A maioria das estatísticas provém de uma minuciosa revisão do noticiário. Nos escritórios da Força Especial de Luta Contra o Crime, estes delitos costumam ser registrados como homicídio ou como tentativa de homicídio, e não há atualmente nenhuma cifra oficial a respeito.
Enquanto isso, os bairros localizados na periferia das cidades mais povoadas do país estão infestados de bonecos de pano que pendem como espantalhos dos postes de luz, junto a pichações que costumam ser um aviso para a violência vindoura. “Ladrão será linchado”, dizem algumas. “Ladrão flagrado será amputado”, ameaçam outras. “Automóvel suspeito será queimado”, lê-se nas paredes de tijolo aqui e ali. E um dos lugares onde esses macabros bonecos mais se reproduzem – quase como parte do mobiliário urbano –é El Alto.
Em um de seus bairros, chamado 30 de Setembro, o morador Esteban Ticona, um sujeito atarracado, ainda por cima agente de polícia, diz que há alguns anos uma ladra foi linchada. Era uma mulher que buscava recursos para alimentar seus sete filhos e que foi flagrada no meio da rua com uma televisão que não era sua. Ela foi moída a pauladas por uma turba inflamada, composta por homens e mulheres de olhos esbugalhados. Essa uma mulher morreu amarrada com suas próprias tranças ao alambrado de campinho de futebol, sem que ninguém movesse um dedo para soltá-la.
“Fui avisado por telefone e, quando cheguei ao campo, a senhora já estava nas últimas. Não havia nem como me envolver, era tarde demais”, recorda Ticona.
Para Norma Barrancos, funcionária da rádio San Gabriel, o problema é que pouco a pouco se perdeu a confiança nos órgãos estatais. “A polícia carece de infraestrutura, de pessoas, de equipamentos, de tecnologia. E isso obriga as entidades comunitárias a atuarem de outras maneiras para se protegerem”, explica. “Por isso os linchamentos aumentaram. Em El Alto, por exemplo, há muita insegurança, muitos assassinatos. Quando acontece alguma coisa, as autoridades, com frequência, nem sequer atendem às emergências. E nem sempre se consegue reabilitar os delinquentes que vão parar na cadeia. Qual é então a solução?”, se pergunta. “A justiça pelas próprias mãos”, ela mesma responde. "Alguns pelo menos, pensam isso: que é preciso liquidar os malfeitores.”
Segundo sua lógica,o ataque é o melhor mecanismo de defesa. Como se o único método para evitar que um criminoso se aproxime – e entre em ação - seja alimentar seu medo.
No bairro Franz Tamayo, de El Alto, quando são testemunhas de algum movimento estranho os vizinhos dão o alarme com a ajuda de rojões, apitos e mensagens de texto. E em Villa Egüez, outro bairro da periferia, se organizaram para fazer rondas noturnas de vez em quando. Ali, Ismael, um tipo vaidoso que usa óculos e um chapéu de aba larga, comenta que quem vem com más intenções ou faz algo mau tem de ser castigado. “Mas nunca até a morte. A vida tem de ser respeitada.”
As sentenças às quais os autores são condenados são uma raridade digna de museu. Poucas foram postas em prática nos últimos dez anos. E o habitual é que as investigações se eternizem ou não acabem em nada. Sobretudo porque as instâncias encarregadas da administração da Justiça estão saturadas. Em 2012, das 405 denúncias registradas na divisão de Homicídios de El Alto – várias delas por linchamento – somente foram esclarecidas 26. E os dois promotores encarregados dos crimes de sangue nessa cidade, a maior do Altiplano boliviano, manuseiam cerca de 1.500 causas que escondem mistérios que ainda não puderam ser resolvidos.
Esteban Ticona, um policial que reside no bairro 30 de Setembro, tem uma frase que tenta dar sentido a essa situação que tira do sério os parentes dos que são alvo de linchamento: “Quando o tempo passa, a verdade foge.”
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marcelo l.- Farrista "We are the Champions"
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