Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado
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Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado
16/11/2014 - 12h06
Dorrit Harazim, O Globo
Invejada pelo alto padrão de vida, baixíssimo índice de criminalidade, estabilidade política e carga tributária mais do que amigável, a Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado.
É um acerto tão urgente quanto indigesto, pois expõe ao mundo a prática de uma “engenharia social” que os atuais 8 milhões de suíços prefeririam esquecer ou desconhecer.
Trata-se da reparação devida às verdingkinder (algo como “crianças arrendadas”). A designação se refere às mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico, distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão de obra barata.
Essa prática começou em meados do século 19 e estendeu-se, pasme o leitor, até 1981. Historiadores estimam que ao longo desse período 5% de todas as crianças suíças foram assim retiradas de suas famílias. Dessas, cerca de 10 mil ainda estão vivas — adultos em sua maioria reclusos, envergonhados, estigmatizados, com cicatrizes psicológicas e físicas da infância roubada.
Uma petição lançada em abril deste ano ultrapassou as 100 mil assinaturas necessárias para um referendo sobre reparação financeira aos sobreviventes. Falta agora a aprovação do Parlamento.
Ela é incerta. O Sindicato dos Agricultores e o majoritário Partido Democrata Liberal, por exemplo, sinalizaram que não vão contribuir para a instituição do fundo de 500 milhões de francos suíços (R$ 1,3 bilhão) recomendado por um comitê de sociólogos, historiadores e juristas.
Para os padrões suíços do século 19, quando uma criança nascia em família pobre ou desestruturada, ou se tornava órfã, a comunidade devia intervir. A solução encontrada para elas não onerarem os cofres públicos foi retirá-las de casa e repassá-las a agricultores necessitados de ajuda braçal.
Em tese as crianças aprenderiam a trabalhar em horários fora da escola e, quando adultas, conseguiriam sobreviver sozinhas.
De início essas verdingkinder eram leiloadas em pregões públicos e arrematadas por quem cobrasse do governo local a menor compensação pela adicional boca a alimentar. Numa segunda fase que perdurou até os anos 1930 a negociação passou a ser feita a portas fechadas.
O mapeamento completo desse capítulo da história exige o cruzamento de registros federais, cantonais e locais nem sempre existentes ou confiáveis.
“Enquanto aqui todo mundo sabe exatamente quantas vacas existem no país, já que cada uma está fichada, até hoje ninguém sabe ao certo quantas crianças foram retiradas à força de suas famílias”, declarou à BBC o guia de uma impactante exposição itinerante sobre o tema.
A mostra inaugurada em 2009 e que rodou por 12 cidades da federação, assombrou quem a viu. A contundência dos depoimentos registrados e do registro fotográfico de época acordou a Suíça.
Não foi um despertar alegre para um país que se considera e é considerado civilizadíssimo, que tem um Roger Federer e abriga, entre tantas outras agências internacionais, justamente a Organização Internacional do Trabalho.
Em artigo publicado esta semana no “New York Times”, o historiador e escritor Tony Wild narra a saga de sua avó Ida, baseado em documentos aos quais teve acesso recentemente. Ida e seu irmão caçula ficaram órfãos. Ela tinha 9 anos, ele 7. Foram separados e alocados a famílias de vilarejos próximos. Ali trabalharam durante oito anos.
Wild descobriu que a herança dos irmãos foi confiscada pelo Estado para pagar as famílias que os exploraram. Como diz o autor, ao colocar crianças vulneráveis à mercê de agricultores pobres e brutos, as autoridades criaram uma situação propícia ao abuso. Surras, desnutrição, abandono, doenças e abuso sexual foram corriqueiros.
Houve crianças puxando sacos de trigo de cem quilos; outras só conseguiram aprender a ler depois de adultas. Por socialmente isolados na infância e na adolescência, muitos sobreviventes se autoisolaram para o resto da vida.
Os registros de suicídios ainda são incompletos. Há mulheres casadas, com filhos e netos, que até mesmo escondem o passado dos parentes por medo de também eles se tornarem socialmente discriminados.
Foram a paulatina mecanização da agricultura e a conquista feminina do direito ao voto, em 1971, que fizeram definhar essa engenharia social perversa.
Talvez uma das últimas vítimas a ser arrebanhada foi o hoje artista plástico Christian M., de 42 anos. No ano não tão arcaico de 1979, a mãe de Christian se divorciara, o Estado interveio e confiscou seus dois filhos para trabalhar na lavoura.
Seis anos depois, em 1985, ele foi internado numa instituição. Estava com 14 anos de idade, exaurido física e psicologicamente, e com polioartrite.
Ao pesquisar seu fichário de 700 páginas descobriu que também seus pais haviam pagado 900 francos suíços mensais à família postiça para garantir sua educação e conforto.
Uma década atrás o parlamento de Berna vetou a primeira tentativa de compensação para vítimas da esterilização adotada paralelamente. (O Estado também prendeu ou despachou para centros de reeducação mães solteiras e jovens considerados degenerados. Abortos forçados, esterilizações e castrações químicas fizeram parte da política social.)
Mas o silêncio oficial sobre os verdingkinder só foi rompido em 2013, através do tão aguardado pedido de desculpas públicas. “Não poderíamos continuar a desviar o olhar, uma vez que foi exatamente isso que fizemos por tempo demais”, discursou a ministra da Justiça, Simonetta Sommaruga.
Proclamou aquela data de “o dia da confissão e um chamamento contra a supressão e o esquecimento”. Uma lei que prevê a “reabilitação” de internados à força também foi aprovada.
Ainda falta muito, a começar pela compensação material. “Não foram apenas as autoridades e agricultores individuais que falharam. Foi uma atitude de toda a sociedade suíça, e ela precisa ser reexaminada.” Palavras sábias da advogada Jacqueline Fehr, do Partido Social Democrata.
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Dorrit Harazim, O Globo
Invejada pelo alto padrão de vida, baixíssimo índice de criminalidade, estabilidade política e carga tributária mais do que amigável, a Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado.
É um acerto tão urgente quanto indigesto, pois expõe ao mundo a prática de uma “engenharia social” que os atuais 8 milhões de suíços prefeririam esquecer ou desconhecer.
Trata-se da reparação devida às verdingkinder (algo como “crianças arrendadas”). A designação se refere às mais de 300 mil crianças pobres, órfãs ou consideradas fardo econômico, distribuídas compulsoriamente pelo Estado a famílias de agricultores, como mão de obra barata.
Essa prática começou em meados do século 19 e estendeu-se, pasme o leitor, até 1981. Historiadores estimam que ao longo desse período 5% de todas as crianças suíças foram assim retiradas de suas famílias. Dessas, cerca de 10 mil ainda estão vivas — adultos em sua maioria reclusos, envergonhados, estigmatizados, com cicatrizes psicológicas e físicas da infância roubada.
Uma petição lançada em abril deste ano ultrapassou as 100 mil assinaturas necessárias para um referendo sobre reparação financeira aos sobreviventes. Falta agora a aprovação do Parlamento.
Ela é incerta. O Sindicato dos Agricultores e o majoritário Partido Democrata Liberal, por exemplo, sinalizaram que não vão contribuir para a instituição do fundo de 500 milhões de francos suíços (R$ 1,3 bilhão) recomendado por um comitê de sociólogos, historiadores e juristas.
Para os padrões suíços do século 19, quando uma criança nascia em família pobre ou desestruturada, ou se tornava órfã, a comunidade devia intervir. A solução encontrada para elas não onerarem os cofres públicos foi retirá-las de casa e repassá-las a agricultores necessitados de ajuda braçal.
Em tese as crianças aprenderiam a trabalhar em horários fora da escola e, quando adultas, conseguiriam sobreviver sozinhas.
De início essas verdingkinder eram leiloadas em pregões públicos e arrematadas por quem cobrasse do governo local a menor compensação pela adicional boca a alimentar. Numa segunda fase que perdurou até os anos 1930 a negociação passou a ser feita a portas fechadas.
O mapeamento completo desse capítulo da história exige o cruzamento de registros federais, cantonais e locais nem sempre existentes ou confiáveis.
“Enquanto aqui todo mundo sabe exatamente quantas vacas existem no país, já que cada uma está fichada, até hoje ninguém sabe ao certo quantas crianças foram retiradas à força de suas famílias”, declarou à BBC o guia de uma impactante exposição itinerante sobre o tema.
A mostra inaugurada em 2009 e que rodou por 12 cidades da federação, assombrou quem a viu. A contundência dos depoimentos registrados e do registro fotográfico de época acordou a Suíça.
Não foi um despertar alegre para um país que se considera e é considerado civilizadíssimo, que tem um Roger Federer e abriga, entre tantas outras agências internacionais, justamente a Organização Internacional do Trabalho.
Em artigo publicado esta semana no “New York Times”, o historiador e escritor Tony Wild narra a saga de sua avó Ida, baseado em documentos aos quais teve acesso recentemente. Ida e seu irmão caçula ficaram órfãos. Ela tinha 9 anos, ele 7. Foram separados e alocados a famílias de vilarejos próximos. Ali trabalharam durante oito anos.
Wild descobriu que a herança dos irmãos foi confiscada pelo Estado para pagar as famílias que os exploraram. Como diz o autor, ao colocar crianças vulneráveis à mercê de agricultores pobres e brutos, as autoridades criaram uma situação propícia ao abuso. Surras, desnutrição, abandono, doenças e abuso sexual foram corriqueiros.
Houve crianças puxando sacos de trigo de cem quilos; outras só conseguiram aprender a ler depois de adultas. Por socialmente isolados na infância e na adolescência, muitos sobreviventes se autoisolaram para o resto da vida.
Os registros de suicídios ainda são incompletos. Há mulheres casadas, com filhos e netos, que até mesmo escondem o passado dos parentes por medo de também eles se tornarem socialmente discriminados.
Foram a paulatina mecanização da agricultura e a conquista feminina do direito ao voto, em 1971, que fizeram definhar essa engenharia social perversa.
Talvez uma das últimas vítimas a ser arrebanhada foi o hoje artista plástico Christian M., de 42 anos. No ano não tão arcaico de 1979, a mãe de Christian se divorciara, o Estado interveio e confiscou seus dois filhos para trabalhar na lavoura.
Seis anos depois, em 1985, ele foi internado numa instituição. Estava com 14 anos de idade, exaurido física e psicologicamente, e com polioartrite.
Ao pesquisar seu fichário de 700 páginas descobriu que também seus pais haviam pagado 900 francos suíços mensais à família postiça para garantir sua educação e conforto.
Uma década atrás o parlamento de Berna vetou a primeira tentativa de compensação para vítimas da esterilização adotada paralelamente. (O Estado também prendeu ou despachou para centros de reeducação mães solteiras e jovens considerados degenerados. Abortos forçados, esterilizações e castrações químicas fizeram parte da política social.)
Mas o silêncio oficial sobre os verdingkinder só foi rompido em 2013, através do tão aguardado pedido de desculpas públicas. “Não poderíamos continuar a desviar o olhar, uma vez que foi exatamente isso que fizemos por tempo demais”, discursou a ministra da Justiça, Simonetta Sommaruga.
Proclamou aquela data de “o dia da confissão e um chamamento contra a supressão e o esquecimento”. Uma lei que prevê a “reabilitação” de internados à força também foi aprovada.
Ainda falta muito, a começar pela compensação material. “Não foram apenas as autoridades e agricultores individuais que falharam. Foi uma atitude de toda a sociedade suíça, e ela precisa ser reexaminada.” Palavras sábias da advogada Jacqueline Fehr, do Partido Social Democrata.
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Re: Suíça tem um acerto de contas a fazer com o seu passado
pqp
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