[História de Vida] De Anos Idos e Porvir (2016)

Autor: CineBraManiaco

31 de dezembro.

Nozes e eles: pernis, frangos, rabanadas e lentilhas, o espumante adocicado - de seco, já bastavam os tempos recentemente vividos. A uva rubi - a moscatel estava pelos olhos da cara; a maionese feita em casa - ovos e óleo batidos com muita paciência no liquidificador; o leite-de-camelo - a moça, o guaraná, e a mesma proporção das Fazendas, as Três.

"Tá chegando a hora", bradava aquele homem antecipando o nascer novo, animado que estava pelo consumo etílico, iniciado uma semana antes na comemoração de outro nascimento.

Quem era aquele homem?

No sincretismo da figa pendurada na sala, ao lado da ferradura; do Papa Pio (XI ou XII?) e daquela condoída representação de um ser na cruz, circundada pela guia trançada em branco e vermelho.

Quem era aquele homem?

Defensor empedernido do primeiro caudilho pai-da-pátria republicano até o Nonô bossa-nova; fã da Marta, a das duas polegadas a mais; das flâmulas do IV Centenário; do Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone e Mário; do Brasil de Pelé, Garrincha; Wlamir e Amaury.

"Pare de gritar, homem de Deus", dizia ela, preocupada, pois, afinal, moravam naquela cobertura em um bairro privilegiado só porque aquele homem era o dono da zeladoria. "E daqui a pouco os moradores vão reclamar da bagunça!", prevenia. "E - seguia ela - parem de espalhar o fubá na sala; alguém ainda vai se machucar dançando esta música do diabo", quando na vitrola se iniciavam os acordes de certo prisioneiro com a pélvis malemolente.

"Bota um Orlando Silva!", ordenava aquele homem.

"Deixe os meninos", dizia ela, preocupada, mas protegendo a cria.

"Vai começar a São Silvestre", ouvia-se no rádio, antes do tiro de largada na Avenida Casper Líbero - antes da Paulista, pois a TV ainda era um sonho distante daquela turma.

"Mas, tinha que ganhar um argentino?", perguntou aquele homem, quando Oswaldo Suarez venceu a corrida.

"Venha me ajudar aqui na cozinha!" pedia ela, como que ordenando àquele homem. Ele acatava o chamado, e levava pra mesa da sala o prato principal: o pernil de 5 kg, temperado por ele e assado em forno brando, segundo mandava a sua experiência como garçom, no Restaurante Gouveia, aquele, na antiga Praça da Sé.

Mas, quem era ela, de voz mansa que se impunha àquele homem de feições rudes e coração doce?

Não sei bem o porquê, era um momento especial. E aquele homem decidiu espocar o champanhe francês Poomery , que ganhara havia mais de dez anos e guardado: afinal, ele ensinava, "o vinho, quanto mais velho melhor".

Com deferência, respeito e educação, ofereceu a ela a primeira taça, daquele que seria o néctar dos deuses. Ela não resistiu, e, após provar o primeiro gole, vociferou em tom menor:

- Mas isto aqui é uma porcaria!

Espanto e gargalhada geral!

Haviam deixado de explicar àquele homem que o vinho branco tem vida curta... E, ao cabo de dez anos, aquela garrafa continha era um cadáver liquefeito...

Mas, quem era este casal sui-generis?

Joaquim e Joaquina. Dois seres sem igual. Amados pelos filhos e netos.

Meus pais. Desde há muito idos, ambos, do nosso convívio.

Oh, saudade doída.

Éramos todos felizes. E sabíamos.

Feliz Ano Novo, Quina e Quinzinho.