Resenha - Deuses de Dois Mundos - O Livro do Silêncio

O filme Thor é baseado na mitologia nórdica, Senhor dos Anéis na cultura celta e no catolicismo, Percy Jackson na mitologia grega, Crônicas de Nárnia na ideologia Evangélica, O Mochileiro da Galáxia na visão de mundo ateia. Eu não precisei ser odinista, celta, católico, adorador de Zeus, protestante ou cético para gostar dessas histórias. O livro Deuses de Dois Mundos é baseado no candomblé, mas pode ser apreciado por qualquer um de qualquer religião ou “não-religião”. Como fã de fantasia e adepto do candomblé sempre achei que as histórias dos orixás poderiam render uma boa aventura (os deuses gregos rendem centenas, porque eles não?). Infelizmente é difícil encontrar romances do gênero em que eles apareçam, com muita sorte dá para vê-los como coadjuvantes (como em Deuses Americanos ou em Enigmas de Londres). Graças aos orixás o escritor P.J Pereira veio atender minha prece de ler um livro de fantasia centrado no imaginário africano com esse excelente livro.

Como toda obra de ficção a principal meta aqui é contar uma boa história que nos envolva emocionalmente com os seus personagens. Deve ser por isso que amei esse livro e detestei um exotérico que havia comprado antes. Livro exotérico é feito para ensinar uma visão de mundo, não contar história. É muito descritivo, não tem enredo envolvente, tende a ser muito piegas e, o que é pior, sua leitura é difícil não por ser rebuscada, mas por ter uma escrita não muito fluída. Problemas que nem de longe aparecem nesse romance que tem uma leitura leve e gostosa. Com suas 260 páginas um leitor mais voraz consegue lê-lo tranquilamente em uma sentada.

Como Labirinto de Kate Moss a história aqui contada é dividida em duas linhas temporais, o presente e o passado remoto, nos tempos mitológicos. A parte do presente é contada em primeira pessoa através de e-mails trocados pelo personagem principal que tenta entender pelo que está passando pedindo ajuda a um desconhecido. Newton Fernandes é um jornalista que ao trabalhar em uma matéria sobre o envenenamento de produtos feitos em uma fabrica de Iogurtes se envolve em uma cadeia de eventos que o leva a se relacionar com um mundo místico a qual nunca havia sequer acreditado. Essa parte do livro, uma fantasia urbana adulta e contemporânea, me fez lembrar livros como os de Neil Gaiman onde mostra pessoas comuns, com empregos comuns e problemas cotidianos convivendo com entidades sobrenaturais.

A parte do livro referente ao passado é contada em terceira pessoa, o período não é relatado claramente, mas dá para perceber que é bem anterior a idade média. Orunmilá é um babalaô que não consegue mais prever o futuro, pois seus búzios deixaram de funcionar. Esse problema não atinge apenas ele, mas todos os babalaôs. O homem descobre que isso ocorreu por causa do sequestro dos odos, os responsáveis pelo destino. Junto de seu guardião (Exu) , de sua filha (Oxum), do caçador (Oxossi), do guerreiro (Ogum), da mestra em disfarce (Iansã) e do belo (Xangô), Orunmilá começa uma jornada para recuperar os odos das mãos das bruxas Iá Mi Oxoronga, as sequestradoras. Essa parte do livro é bem ao estilo High Fantasy, só que ao invés de inspirada em folclore europeu aqui a inspiração é africana. O grupo de Orunmilá é formado aos poucos, sendo que cada um tem uma habilidade especial (um negócio meio X-men). Durante a jornada, em cada parada a “sociedade do anel africana” enfrenta um desafio. Com um pouco de imaginação quem estiver interessado irá conseguir criar um belo RPG baseado nesse cenário. Dragões e orcs, coisas bem europeias, aqui não estão presentes. Porém há seus equivalentes.

Em se tratando de violência e sexo o livro tem um pouquinho, mas nada apelativo. Digo até mais, esses dois elementos são essenciais a trama se não ela iria soar falsa. Depois de ler Game of Thrones comecei a me incomodar com o fato de a maioria das fantasias medievais terem personagens tão educados quanto as pessoas contemporâneas, o que não dá para aceitar. Nessa época difícil cujo a vida era mais dura se você fosse muito bonzinho não duraria um mês. Acho que isso não foi a intenção do autor, mas eu achei muita graça em perceber o quão brutos são alguns personagens. Por exemplo: Ogum por ofensas pequenas reage de maneira super exagerada, dá até a impressão que seus colegas tem um pé atrás com ele. As brincadeiras meio perversas de Exu também são muito engraçadas. Do grupo esses dois são os que achei mais interessantes. Quanto a Newton Fernandes, ele é um homem de vinte e sete anos. Na minha opinião soaria estranho uma história centrada em um personagem nessa idade em que ele não tivesse alguma questão sexual para resolver. Em seu caso uma amizade colorida com uma colega de trabalho chamada Duda, algumas conquistas de solteiro e o interesse por uma loura que dá a impressão de que será um imã de problema.

Caso você seja fã de quadrinhos já deve ter passado pela experiência de ao assistir uma adaptação cinematográfica perceber uma referência que passou batida ao pessoal que não lê HQ. Aqui ocorre algo parecido, só que com adeptos do candomblé no lugar dos fanboys. Por exemplo, há uma parte que o autor descreve um abraço trocado entre Orunmilá e um outro babalaô. Quem não entende nada da religião vai achar que é só um abraço diferente. Outro “easter egg” é o fato de Orunmilá só sentar em banco pequeno.

Dos vários livros que comprei em 2013 (e foram muitos) este foi de longe o que mais me empolgou. Porém eu sei que muito disso vem do fato da história desse romance se relacionar com uma parte importante da minha vida, não sei se a obra tem o poder de ter esse mesmo efeito com leitores cujo as vidas não tem nada a ver com religiões Afro-Brasileiras. Mesmo assim, se for esse o seu caso, você estará comprando uma boa história de aventura que mistura fantasia urbana com alta fantasia. A história no passado é mais épica e heroica enquanto a do presente é mais cheia de suspense, quase que um thriller. Caso você seja um leigo que queira aprender mais sobre os cultos africanos esse livro é altamente recomendado. Além de mostrar muito bem como é o pensamento dessas religiões, com o romance você aprenderá se divertindo, o que é muito melhor do que aturar uma explicação massante de um livro exotérico.

O Livro do Silêncio é o primeiro volume de uma trilogia, logo ele não tem história fechada, para ver como a trama termina você terá que comprar as continuações. Um detalhe que achei bem legal é que no fim desse romance, no epilogo, é mostrado um pouco mais do que parece ser o principal antagonista do próximo volume, uma coisa bem cena pós-crédito de filme da Marvel. Estou super ansioso para ler os volumes 2 e 3. Além de nutrir esperança que haja alguma batalha épica envolvendo exércitos numerosos e de que outras entidades apareçam como os erês e a minha santa, Iemanjá.

Eita que essa resenha ficou gigante! Refletindo o tamanho do meu apresso por esse livro. Como sou fã de Rock pesado só mesmo uma postagem sobre esse assunto me faria querer finalizar o texto com essa palavra: Axé!